Brasil Real Oficial #004
As principais ações oficiais do governo federal | 28 de janeiro a 1º de fevereiro de 2019
No momento em que eu enviava a newsletter da semana passada, a barragem da Vale em Brumadinho se rompia e arrastava para a morte (provavelmente) mais de 300 pessoas. Como era de se esperar, a semana do governo federal teve esse assunto como tópico central (na minha semana também, inclusive com direito a esta reportagem publicada no The Intercept Brasil). Por isso, neste primeiro bloco eu vou consolidar as diferentes medidas oficiais que foram tomadas pelo governo federal como reação ao desastre em Minas Gerais.
1) Castelo de cartas
O essencial: O governo formalizou uma série de medidas para indicar reação rápida ao desastre de Brumadinho, mas poucas possuem efeito prático imediato. Um Conselho Ministerial foi criado na própria sexta-feira apenas com poderes para “propor” e “recomendar” ações. Mesmo um comitê formado dentro desse grupo, com caráter mais executivo, também nasceu sem poderes efetivos. Falta também comando real. Embora sejam compostos por mais de uma dezena de órgãos do governo federal, as decisões, tanto no Conselho Ministerial quanto no Comitê de Gestão e Avaliação de Respostas a Desastres, são tomadas no voto por maioria simples. A coordenação da Casa Civil é apenas burocrática, já que ela pode ser voto vencido no grupo. Somente em caso de empate, ela tem poder maior, com voto de minerva.
Outras coisas importantes que vale a pena você saber:
O Comitê pode convidar outros órgãos para fazer parte do grupo (como o Ministério Público, Defensoria Pública, governo de Minas Gerais e a prefeitura de Brumadinho, entre outros), mas esses convidados não terão direito a voto.
O decreto foi tão estabanado que, na primeira versão, não foram incluídos os ministros que poderiam ser, neste momento, uma sombra para a liderança de Onyx Lorenzoni, ministro-chefe da Casa Civil: Justiça (Sergio Moro), Economia (Paulo Guedes), Infraestrutura (ministro da cota militar), e os palacianos Secretaria de Governo e Secretaria-Geral da Presidência. Eles só foram incluídos no Conselho Ministerial e no comitê executivo num segundo decreto, publicado na segunda-feira.
O grupo vai funcionar por um período mínimo de seis meses, com reuniões semanais, mas com foco apenas na questão da barragem do Córrego do Feijão. Embora o nome do comitê seja genérico, não é, ao menos por ora, um grupo para definir as questões das barragens em geral no país.
A medida mais concreta do grupo até aqui foi "recomendar" ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos que "realize imediatamente" fiscalizações em barragens com "dano potencial associado alto" ou "risco alto", com verificação de eventual retirada de prédios e casas que estejam em zona de influência direta de barragens nessas condições (como era o caso do centro administrativo da Vale em Brumadinho).
O comitê “recomendou”, também, auditorias nos procedimentos e atos que definiram as regras de fiscalização de segurança de barragens. Essas auditorias devem ser feitas dentro de três meses, mas um despacho do Ministério do Desenvolvimento Regional definiu que vistorias in loco devem ser realizadas desde já.
Foi também criado um subcomitê para elaborar um projeto para atualização da Política Nacional de Segurança de Barragens. Esse grupo, formado por órgãos do governo federal, inclusive autarquias como o Ibama e agências reguladoras, tem a missão de apresentar um proposta fechada até o fim deste mês, mas, depois, ainda dependerá de aprovação do Conselho Ministerial.
O Ministério de Minas e Energia determinou que, até segunda-feira, as empresas responsáveis por barragens de rejeitos de mineração em todo o país informem ao governo se já tomaram alguma medida relativa à segurança de suas barragens após a tragédia em Brumadinho, esclarecendo, se for o caso, o motivo de ainda não terem tomado providências. Mas não há nenhuma punição envolvida em caso de nada ter sido feito. Pelo contrário, o texto prevê que as empresas poderão pedir providências ao próprio governo.
Uma das medidas mais interessantes tomadas nessa semana em relação ao caso foi uma portaria da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional alterando, para o município de Brumadinho, uma série de regras do Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar. Entre as mudanças, uma ampliação no limite de recursos a serem usados pelo governo para comprar a produção de pequenos agricultores do município a partir de critérios sociais (como a proporção da população envolvida com agricultura familiar, índice de extrema pobreza e de insegurança alimentar). As novas regras também definem que 40% das compras devem ser feitas de produtoras mulheres. O dinheiro total a ser usado pelo governo, no entanto, será usado de maneira parcelada, dividido por trimestre. Ou seja, a ajuda imediata não será grandes coisas e, ainda assim, segundo o texto, os pagamentos futuros ficam pendentes da execução orçamentária do ministério, podendo sofrer cortes.
Real Oficial: Decreto nº 9.691, de 25 de janeiro de 2019 | Decreto nº 9.693, de 27 de janeiro de 2019 | Resolução nº 1, de 28 de janeiro de 2019 (Conselho Ministerial de Supervisão de Respostas a Desastres) | Resolução nº 2, de 28 de janeiro de 2019 (Conselho Ministerial de Supervisão de Respostas a Desastres) | Moção nº 72, de 29 de janeiro de 2019 (Ministério do Desenvolvimento Regional) | Portaria nº 21, de 31 de janeiro de 2019 (Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral - Ministério de Minas e Energia) | Portaria nº 22, de 29 de janeiro de 2019 (Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - Ministério da Cidadania)
2) Janela para a lama
O essencial: Esta, no limite, até poderia entrar no bloco das ações de resposta ao desastre, mas optei por deixar separado devido à importância dela e por não haver certeza de que a brecha aberta será de fato explorada pela Vale. O fato é que o Ibama abriu uma nova janela para beneficiar pessoas e empresas que foram multadas pelo Ibama até fevereiro de 2018 e que, em vez de pagar o que devem em dinheiro, desejam converter essas multas em prestação de serviços (de valor equivalente) que ajudem a preservar e recuperar o meio ambiente. As empresas infratoras podem fazer esse pedido até 31 de dezembro deste ano e com desconto de até 60% no valor a ser aplicado em ações de preservação. Esse agrado do governo, criado em fevereiro do ano passado, previa que os multados antes da publicação das regras só pudessem requisitar o benefício até agosto passado. Agora esse prazo está reaberto pelo Ibama, e por um período bem maior do que a norma original.
Brechas em potencial:
A Vale foi multada administrativamente pelo Ibama em R$ 250 milhões por conta da tragédia de Brumadinho. Esse é o tipo de multa que pode ser convertida em prestação de serviço ambiental, e que não inviabiliza ações de reparação de danos (responsabilidade civil, não administrativa). A Samarco (que tem a Vale como sócia) já tinha sido multada pelo Ibama no caso de Mariana - e ainda não pagou nada. E, nesse caso, se a Samarco/Vale ainda não tinha pedido conversão da multa no prazo original, terá o ano inteiro para fazer isso. A janela está aberta.
A regra original segue valendo: qualquer empresa multada depois da publicação das regras poderá pedir para trocar a multa recebida pela aplicação desse valor, com desconto de pelo menos 35%, em projetos de recuperação ambiental. Não existe prazo para isso, e o pedido pode ser feito mesmo depois da apresentação alegações finais nos processos administrativos - ou seja, a empresa pode ir até o final para ver se consegue anular a multa como um todo. No limite, poderá optar pelo desconto. Mais uma janela aberta para a Vale, desta vez em relação a Brumadinho.
Real Oficial: Instrução Normativa nº 5, de 31 de janeiro de 2019 (Ibama)
3) Transparência para minerador ver
O essencial: A pretexto de reduzir o sigilo sobre processos minerários, a Agência Nacional de Mineração acabou ampliando a possibilidade de segredo sobre esses documentos. A ANM, em resolução publicada nesta semana, deixou de considerar sigiloso qualquer processo minerário, mas com vários poréns. Mais um indiretamente relacionado ao caso de Brumadinho, mas assinada poucas horas antes da tragédia, aparentemente.
Brechas em potencial:
A resolução deixa uma brecha grande para que a ANM torne sigiloso qualquer documento do processo minerário, desde que haja pedido da empresa responsável, com a indicação de itens específicos, nos casos em que a divulgação dessas informações possa comprometer sigilo industrial ou "representar vantagem competitiva" a outra empresa. Neste segundo ponto, a subjetividade é muito ampla.
A Diretoria Colegiada da ANM, mesmo de ofício (ou seja, sem ser provocada), pode restringir o acesso à informação de processos "para fins de proteção baseada no interesse público, necessária à preservação da segurança da sociedade e do Estado". Mais um ponto de subjetividade.
Basta haver a requisição e as partes pretendidas como sigilosas pelas empresas já serão separadas numa outra pasta, longe do acesso público. O sigilo é liminarmente garantido, portanto. Se, no futuro, houver, enfim, uma decisão final que seja contrária ao pedido de sigilo, aí sim a papelada volta para o processo principal.
Outras coisas importantes que vale a pena você saber:
Além daqueles pontos em aberto, há outros com sigilo imposto desde já. As informações geradas no processo de mineração, como o resultado da pesquisa, da lavra, da comercialização, entre outros, seguirão em segredo. Também ficam em segredo o Relatório de Pesquisa, Plano de Aproveitamento Econômico, Relatório de Reavaliação de Reservas e Relatório Anual de Lavra (RAL).
Antes, os "superficiários de áreas oneradas", ou seja, os donos dos terrenos onde as mineradoras fazem a pesquisa e lavra, podiam ter acesso a todos os processos sigilosos, desde que apresentassem a escritura do imóvel correspondente. Agora, para além do que será público para qualquer pessoas, esses proprietários só terão acesso extra ao Relatório Anual de Lavra. A terra é deles, mas o segredo é das mineradoras.
Real Oficial: Resolução nº 1, de 25 de janeiro de 2019 (Agência Nacional de Mineração)
4) Risco maior para as agências de risco
O essencial: Uma nova instrução da CVM aumenta a rigidez sobre as ações de agências de classificação de risco. Agora, essas agências podem ser proibidas de operar por até 20 anos no Brasil caso a nota de crédito emitida por elas “contenha declarações falsas” ou “induza o usuário a erro quanto à situação creditícia de um emissor ou de um ativo financeiro”. O aumento da punição também se aplica a casos de relatórios produzidos pelas empresas de classificação sem a "observância aos procedimentos e metodologias adotados pela agência".
Outras coisas importantes que vale a pena você saber:
Também passa a ser considerada infração grave, agora em relação ao administrador ou ao gestor de fundos de investimento, não ser diligente na administração do fundo, inclusive pelo "recebimento de qualquer remuneração, benefício ou vantagem, direta ou indiretamente por meio de partes relacionadas, que potencialmente prejudique a independência na tomada de decisão de investimento pelo fundo". Ou seja, amplia também a rigidez sobre conflitos de interesse na administração e gestão de fundos de investimento.
Real Oficial: Instrução nº 605, de 25 de janeiro de 2019 (Comissão de Valores Mobiliários)
5) Grampo federal nas celas
O essencial: O ministro Sérgio Moro recriou a Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária, com algumas diferença em relação a versões anteriores dessa mesma força-tarefa. A principal delas é que, agora, além da “guarda, vigilância e custódia” de presos, uma das atribuições do grupo será a realização de atividades de inteligência que tenham relação com o sistema prisional - isto é, o monitoramento do PCC e outras quadrilhas que atuam dentro dos presídios. Mas somente quando acionadas pelos estados.
Brecha em potencial:
No mesmo dia da recriação da força-tarefa, o Ministério da Justiça publicou portaria deslocando a Força-Tarefa para 45 dias de atuação no Ceará, mas sem especificar se haveria atuação na área de inteligência. O mesmo hiato ficou em uma outra portaria que mobiliza a força-tarefa para período de "treinamento e sobreaviso".
Outras coisas importantes que vale a pena você saber:
Força-Tarefa semelhante, com o mesmo nome, já tinha sido criada em janeiro de 2017. Na época, era vinculada apenas à Força Nacional de Segurança. Em outubro passado, houve alteração e passou a ser vinculada tanto à FNS quanto ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Agora é só ao Depen, fortalecido sob Sergio Moro. Mas, em ambos os casos, a FTIP não tinha competência para atuar na área de inteligência, como esta agora tem.
Real Oficial: Portaria nº 65, de 25 de janeiro de 2019 (Ministério da Justiça)
6) Analgésico para planos de saúde
O essencial: A Agência Nacional de Saúde Suplementar, que regula o mercado de planos de saúde, abriu caminho para que, em troca de clareza no controle interno e gestão de riscos de forma a evitar quebra financeira, a agência poderá flexibilizar as exigências para que as operadoras mantenham capital reservado para a cobertura de riscos (fatores de capital regulatório), reduzindo o montante necessário.
Brecha em potencial:
A verificação do atendimento aos critérios exigidos pela ANS (são apenas quatro) será feita anualmente pelo Relatório de Procedimentos Previamente Acordados (PPA) - obrigatório para as operadoras de grande e médio porte. Mas quem vai produzir o relatório PPA são auditores externos. A própria resolução da ANS já vê potencial de conflito de interesse ao estabelecer que é responsabilidade das operadoras a verificação de que os auditores atendem a critérios de independência e competência, e ao definir que o auditor não tenha prestado serviços à operadora nos últimos dois anos. É uma autovistoria, guardadas as proporções, de lógica semelhante à praticada no mercado da mineração.
Real Oficial: Resolução Normativa nº 443, de 25 de janeiro de 2019 (ANS)
7) Lavoisier e a Receita
O essencial: A Receita Federal decidiu flexibilizar consideravelmente o conceito de destruição de mercadorias apreendidas ou abandonadas. Agora, depois de leilão, esses produtos poderão ser exportados pelas empresas que arrematarem os bens. A portaria permite que cigarros e outros derivados de tabaco, uma vez leiloados, possam ser exportados "nos casos em que houver restrição ou impossibilidade para seu uso, consumo, industrialização ou comércio no território nacional". O mesmo vale agora, em tese, para outros produtos que estejam destinados à destruição, mas o único aparentemente viável de ser exportado, considerando a lista da Receita, são cigarros e os derivados de tabaco - que, até esta portaria, estavam terminantemente destinados à destruição.
Brechas em potencial:
A destruição ou inutilização dos produtos agora pode ser compreendida apenas como "a retirada de sua atratividade comercial". Antes era exigido que os produtos fossem tornados “impróprios para os fins originais”. A destruição agora também deve ser feita, sempre que possível, de forma que os resíduos possam resultar em reutilização de forma economicamente viável. Antes, era necessário apenas que a reciclagem fosse viável.
Outras coisas importantes que vale a pena você saber:
Os resíduos das destruições de mercadoraias agora podem ser doados a associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis.
A portaria também define uma série de regras novas para garantir o controle ambiental da disposição final dos resíduos dos processos de destruição de mercadorias. Fica agora explicitamente vedado o lançamento de resíduos em praias e rios, in natura a céu aberto, e queima a céu aberto.
Real Oficial: Portaria nº 59, de 30 de janeiro de 2019